quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A-ç-ã-o

"Sair, fazer, pôr em dia, não eram coisas que o ajudassem a adormecer. Pôr em dia, que expressão! Fazer. Fazer algo, fazer o bem, fazer pipi, fazer hora: a ação em todas as suas complicações. Contudo, por trás de toda e qualquer ação, havia sempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, ou mover algo para que ficasse aqui e não ali, ou entrar numa determinada casa em vez de entrar ou não entrar na casa ao lado, significando isso que em qualquer ato havia sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito que era possível fazer, o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente. Acreditar que a ação pudesse culminar ou que a soma das ações pudesse realmente equivaler a uma vida digna desse nome era uma ilusão de moralista. Mais valia renunciar, pois a renúncia à ação era o próprio protesto, e não a sua máscara".

Cortázar, em O jogo da amarelinha.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nadando contra a velocidade

Sentimos vontade de passar a tarde e a noite num castelo. Muitos deles, na França, foram transformados em hotéis: um quadrado verde perdido numa extensão de feiúra desprovida de verde; uma pequena extensão de aléias, de árvores, de pássaros no meio de uma imensa rede de estradas. Estou dirigindo e, pelo retrovisor, observo um carro atrás de mim. A pequena luz à esquerda pisca, e o carro todo emite ondas de impaciência. O motorista espera a oportunidade de me ultrapassar; espera esse momento como uma ave rapina espreita um pássaro.
Vera, minha mulher, me diz:
- A cada cinquenta minutos, morre um homem nas estradas da França. Repare bem nesses loucos em volta de nós. São exatamente os mesmos que se comportam com uma prudência extraordinária quando uma senhora de idade é assaltada diante deles na rua. Como podem não ter medo quando estão dirigindo?
O que responder? Talvez isso: o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado, não sabe nada de sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.
Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Lembro-me daquela americana que, há trinta anos, com expressão severa e entusiasmada, uma espécie de apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a liberação sexual; a palavra que surgia com maior frequência em seu discurso era a palavra orgasmo; eu contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia em contraposição à ociosidade; o coito reduzido a um obstáculo que é preciso ultrapassar o mais rápido possível para chegar a uma explosão extática, único objetivo verdadeiro do amor e do universo.
Porque o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza? Um provérbio tcheco define a doce ociosidade deles com uma metáfora: eles estão contemplando as janelas de Deus. Aquele que contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está sempre à procura do movimento que lhe falta.
Olho pelo retrovisor: ainda é o mesmo carro, que não pode me ultrapassar por causa do trânsito no sentido contrário. Ao lado do motorista está sentada uma mulher; por que será que o homem não lhe conta alguma coisa engraçada? Por que não põe a mão no joelho dela? Em vez disso, amaldiçoa o motorista que, diante dele, não anda rápido o bastante, e a mulher também não pensa em tocá-lo com sua mão, dirige mentalmente com ele e também me amaldiçoa.
E penso naquela outra viagem de Paris para um castelo no campo, que aconteceu há mais de duzentos anos: a viagem de Madame de T. e do jovem cavalheiro que a acompanhava. É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera de sensualidade que os cerca nasce justamente da lentidão da cadência: balançados pelo movimento da carruagem, os dois corpos se tocam, primeiro sem querer, depois querendo, e a história começa.

Milan Kundera, no Primeiro Capítulo do livro A Lentidão.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Nada é impossível de mudar

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar."
Bertold Brecht

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Porque é tão difícil escolher?

"Torturava-se com recriminações, mas terminou por se convencer de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.
...
Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: ein-mal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca".

Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Ditado da África: "A gente não tem relógio, mas a gente tem tempo".

Preâmbulo às Instruções para dar Corda no Relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com uma correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

Cortázar, em Histórias de Cronópios e de Famas

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Bom dia, Dia.

67

Estou amarrando os sapatos, contente, assobiando; e de repente a infelicidade. Mas desta vez eu te pesquei, angústia, senti a tua chegada antes de qualquer organização mental, ao primeiro juízo de negação. Como uma cor cinza que fosse uma dor e fosse o estômago. E quase ao mesmo tempo (mas depois, dessa vez não me enganaste) o repertório incompreensível abriu caminho, com uma primeira idéia explicatória: "E agora viver outro dia, etc." Do que se deduz: "Estou angustiado porque... etc."
As ideias à vela, impulsionadas pelo vento primordial que sopra de baixo (mas de baixo é apenas uma localização física). Basta uma mudança de brisa (mas o que é que a faz mudar de quadrante?), e logo a seguir surgem as barquinhas felizes, com suas velas coloridas. "Apesar de tudo, não há razão de queixa, cara...", esse estilo.

Acordei e vi a luz do amanhecer pelas frestas da persiana. Saía tão de dentro da noite que tive como que um vômito de mim mesmo, o espanto de entrar num novo dia com a mesma apresentação, com a sua indiferença mecânica de sempre: consciência, sensação de luz, abrir os olhos, persiana, o amanhecer.
Nesse segundo, com a onisciência do semi-sonho, medi o horror daquilo que tanto maravilha e encanta as religiões: a perfeição eterna do cosmos, a rotação incessante do globo sobre o seu eixo. Náusea, sensação insuportável de coação. Sou obrigado a tolerar que o sol saia todos os dias. É monstuoso. É inumano.
Antes de voltar a adormecer, imaginei (vi) um universo plástico, mutante, cheio de maravilhosos acasos, um céu elástico, um sol que inesperadamente falta, ou fica imóvel, ou muda de forma.
Ansiei pela dispersão das duras constelações, essa suja propaganda luminosa do Truste Divino Relojoeiro.

O jogo da amarelinha- Cortázar


Por mais que se ame a vida, nem todos os dias é tão bom abrir os olhos. Como tudo no mundo parece ambíguo... As sensações são sempre o que, de alguma maneira, nos motiva, nos empurra, nos leva adiante. Mas essas mesmas sensações, incontroláveis, sensíveis, podem nos levar ao abismo. A ordem, que faz com que as coisas funcionem, muitas vezes desespera. Queria poder pedir à vida mais dias de excessões, de absurdos, de milagres. As vezes queria poder pedir à vida, mais vida.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Em casa - Tchékhov

- Vieram da parte dos Grigóriev buscar não sei que livro, mas eu disse que o senhor não estava em casa. O carteiro trouxe os jornais e duas cartas. A propósito, Ievguêni Pietróvitch, eu lhe pediria que prestasse atenção no Seriója. Hoje e anteontem eu reparei que ele fuma. Quando eu comecei a repreendê-lo, ele, como de costume, entupiu os ouvidos e pôs-se a cantar alto, para abafar a minha voz...
Ievguêni Pietróvitch Bikovski, procurador do tribunal regional, que acabava de voltar de uma sessão e estava tirando as luvas no seu gabinete, olhou para a governanta que lhe fazia o relatório e riu.
- Seriója fuma... - encolheu ele os ombros. - Imagina esse pirralho com um cigarro! Quantos anos ele tem mesmo?
- Sete anos. Ao senhor isto não parece coisa séria, mas na sua idade o fumar representa um hábito mau e pernicioso, e é preciso erradicar os maus hábitos desde o começo.
- Totalmente correto. E onde ele arranja o tabaco?
- Na escrivaninha do senhor.
- É mesmo? Neste caso, mande-o para mim.
Quando a governanta saiu, Bikovski sentou-se na poltrona diante da escrivaninha, fechou os olhos e pôs-se a pensar. Na sua imaginação, ele, sem saber por que, pintava o seu Seriója com um enorme cigarro de um palmo de comprimento, entre nuvens de fumaça de tabaco, e essa caricatura o fazia rir; ao mesmo tempo, o rosto sério e preocupado da governanta despertou-lhe lembranças de um tempo há muito passado e meio esquecido, quando o fumar na escola e no quarto das crianças incutia nos pedagogos e nos pais um terror estranho e não muito compreensível. Era justamente terror. Os garotos eram surrados sem dó, expulsos do ginásio, truncavam-lhes a vida, embora nenhum dos pais ou pedagogos soubesse em que realmente consistiam o prejuízo e a delinquência do fumar. Mesmo pessoas muito inteligentes não se davam ao trabalho de lutar contra um vício que não compreendiam. Ievguêni Pietróvitch lembrou-se do seu diretor do ginásio, um velhote muito instruído e bondoso, que se assustava tanto quando topava com ginasiano com um cigarro que empalidecia, convocava imediatamente uma reunião pedagógica extraordinária e condenava o culpado à expulsão. Assim deve ser, ao que parece, a lei da convivência: quanto mais incompreensível o mal, tanto mais encarniçada e grosseira é a luta contra ele.
O procurador lembrou-se de dois ou três dos expulsos, suas vidas subsequentes, e não pôde deixar de pensar que o castigo muitas vezes traz males bem maiores que o próprio crime. Um organismo vivo dispõe da capacidade de se adaptar rapidamente, habituar-se e acomodar-se a qualquer atmosfera, senão o homem deveria sentir a cada momento que no fundo irracional têm às vezes as suas atividades racionais e quão pouca verdade há em atividades tão sensatas e terríveis pelos seus resultados, como a pedagógica, a jurídica, a literária...
E pensamentos semelhantes, leves e difusos - que só entram num cérebro fatigado em repouso - começaram a flutuar na cabeça de Ievguêni Pietróvitch; eles surgem não se sabe de onde nem para que, pouco se demoram na cabeça e, ao que parece, se arrastam pela superfície do cérebro, não penetrando mais profundamente. Para pessoas obrigadas durante horas e mesmo dias a pensar burocraticamente, numa só direção, tais pensamentos soltos e domésticos constituem uma espécie de conforto, uma comodidade agradável.
Passava das oito horas da noite. Em cima, sobre o teto, no segundo andar, alguém andava de um lado para outro, e ainda mais alto, no terceiro andar, quatro mãos tocavam escalas. Os passos da pessoa que, a julgar pelo caminhar nervoso, entregava-se a pensamentos torturantes ou sofria de dor de dentes, mais as escalas monótonas, conferiam ao silêncio do anoitecer algo de sonolento, que predispunha a pensamentos preguiçosos. Dois cômodos adiante, no quarto das crianças, conversavam a governanta e Seriója.
- Pa-pai chegou! - cantou o menino.- Papai chegou! Pa! pa! pai!
- Votre père vous apelle, allez vite! - gritou a governanta, num guincho de ave assustada. - Estou lhe dizendo!
"Mas afinal, o que é que eu vou lhe dizer?", pensou Ievguêni Piétrovitch.
Mas antes que pudesse lembrar alguma coisa, já entrava no gabinete o seu filho Seriója, menino de sete anos. Era uma figura na qual só pela roupa se podia adivinhar-lhe o sexo: franzino, pálido, frágil... Era murcho de corpo como um legume cozido, e tudo nele parecia extraordinariamente delicado e mole: os movimentos, o cabelo encaracolado, o olhar, o casaquinho de veludo.
- Boa noite, papai! - disse ele com voz macia, encarapitando-se nos joelhos do pai e dando-lhe um rápido beijo no pescoço. - Você me chamou?
- Com licença, com licença, Serguêi Ievguênitch - respodeu o procurador, afastando-o de si. - Antes de nos beijarmos, precisamos conversar, e conversar seriamente... Estou zangado e não gosto mais de você. Fique sabendo, maninho: eu não gosto de você, e você não é mais meu filho. Sim.
Seriója olhou fixamente para o pai, depois passou a olhar para a mesa e deu de ombros.
- E o que foi que eu lhe fiz? - perguntou ele, piscando os olhos, perplexo. - Hoje eu não entrei nem uma vez no seu escritório e nem mexi em nada.
- Agora mesmo, Natália Semiónovna me fez queixa de que você está fumando. Isto é verdade? Você fuma?
- Sim, eu fumei uma vez... Isto é verdade!
- Está vendo, você mente ainda por cima - disse o procurador, fazendo carranca e assim disfarçando o sorriso. - Natália Semiónovna viu você fumando duas vezes. Quer dizer que você foi apanhado em três más ações: você fuma, tira da gaveta o tabaco alheio e mente. Três culpas!
- Ah sim, sim - lembrou-se Seriója, e seus olhos sorriram. - Isto é certo, está certo! Eu fumei duas vezes: hoje e antes.
- Pois então, está vendo, não foi uma vez, mas duas vezes. Eu estou muito, muito descontente com você! Antes você era um bom menino, mas agora estou vendo que você ficou estragado e tornou-se mau.
Ievguêni Pietróvitch ajeitou o colarinho de Seriója e pensou: "O que mais eu posso dizer-lhe?".
- Sim, isto é mau - continuou ele -, eu não esperava de você uma coisa dessas. Em primeiro lugar, você não tem o direito de pegar um fumo que não lhe pertence. Cada um só tem o direito de se servir daquilo que lhe pertence, e se pega uma propriedade alheia, então... não é um homem bom! ("Não era isso que eu queria lhe dizer"- pensou Ievguêni Pietróvitch.) Por exemplo, Natália Semiónovna tem uma arca de roupas. Essa arca é dela, e nós, isto é tanto você como eu, estamos proibidos de mexer nela, pois ela não é nossa. Não é verdade? Você tem cavalinhos e figurinhas... E eu não pego neles, certo? Quem sabe eu até gostaria de pegá-los, mas acontece que eles são seus e não meus!
- Pode pegar, se quiser! - disse Seriója, erguendo as sobrancelhas. - Por favor, papai, não se acanhe, pegue-os! Esse cachorrinho amarelo sobre a sua mesa, ele é meu, mas eu... nada... Deixa que fique aí!
- Você não me entende - disse Bikovski. - Você me deu esse cachorrinho de presente, agora ele é meu, e posso fazer com ele tudo o que eu quiser; mas o tabaco, eu não lhe fiz presente dele! O tabaco é meu! ("Não é assim que eu tinha de explicar!", pensou o procurador. "Não é nada disso, nada disso, de todo!") Se eu tenho vontade de fumar tabaco alheio, então, antes de tudo, eu tenho de pedir licença...
Preguiçosamente enganchando uma frase na outra frase, e imitando o linguajar infantil, Bikovski pôs-se a explicar ao filho o que é propriedade. Seriója fitava-o no peito e ouvia atentamente (ele gostava de conversar à noite com o pai), depois debruçou-se sobre a beira da mesa e começou a apertar seus olhos míopes sobre o papel e o tinteiro. Seu olhar vagou pela mesa e se deteve sobre um frasco de goma arábica.
- Papai, do que se faz a cola? - perguntou ele de repente, aproximando o frasco dos olhos.
Bikovski tirou-lhe o frasco das mãos, recolocou-o no lugar e continuou:
- Em segundo lugar, você fuma... Isso é muito ruim! Se eu fumo, isso ainda não significa que se pode fumar. Eu fumo e sei que isso não é inteligente, eu ralho comigo mesmo e não gosto de mim por isso. ("Que pedagogo esperto que eu sou", pensou o procurador.) O tabaco faz mal à saúde, e aquele que fuma morre antes do tempo. Mas fumar é especialmente prejudicial aos pequenos como você. Você tem o peito fraco, você ainda não se fortificou, e nas pessoas fracas a fumaça do cigarro causa tísica e outras doenças. O tio Ignáti, ele morreu de tísica. Se ele não fumasse, quem sabe hoje ainda estaria vivo.
Seriója olhou pensativamente para a lâmpada, mexeu no abajur e suspirou.
- O tio Ignáti tocava bem o violino! - disse ele. - O violino dele agora está com os Grigóriev!
Seriója debruçou-se novamente sobre o canto da mesa e ficou pensativo. No seu rosto pálido congelou-se uma expressão, como se estivesse escutando ou observando o desenvolvimento dos seus próprios pensamentos; tristeza e algo semelhante a susto apareceram nos seus olhos grandes e fixos. Decerto pensava agora sobre a morte, que havia tão pouco tempo levara consigo sua mãe e o tio Ignáti. A morte leva para o outro mundo as mães e os tios, enquanto seus filhos e violinos ficam na terra. Os defuntos moram em algum lugar lá no céu perto das estrelas e de lá olham para a terra. Será que eles suportam a separação?
"O que eu vou dizer-lhe?", pensava Ievguêni Pietróvitch. "Ele não me escuta. Evidentemente, não considera importantes nem os seus malfeitos nem os meus argumentos. Como fazê-lo entender?"
O procurador levantou-se e começou a andar pelo gabinete,
"Antigamente, no meu tempo, essas questões eram resolvidas com maravilhosa simplicidade", cogitava ele. "Qualquer garoto apanhado fumando era surrado. Os timoratos e medrosos de fato largavam o fumo, mas o mais inteligente e corajoso começava a carregar o tabaco no cano da bota e a fumar no galpão. Quando era apanhado fumando no galpão e novamente surrado, ele ia fumar à beira do rio... e assim por diante, até ficar crescido. Minha mãe me enchia de dinheiro e de balas para que eu deixasse de fumar. Mas agora esses recursos são considerados mesquinhos e imorais. Colocando-se no terreno da lógica, o pedagogo moderno esforça-se para que a criança assimile os bons princípios não por medo, não por vontade de se destacar ou ganhar uma recompensa, mas sim conscientemente".
Enquanto ele andava e pensava, Seriója subiu com os pés na cadeira ao lado da mesa e começou a desenhar. Para que ele não sujasse papéis oficiais e não mexesse na tinta, sobre a mesa havia uma pilha de folhas, especialmente cortadas para ele, e um lápis azul.
- Hoje a cozinheira estava picando repolho e cortou o dedo - disse ele, desenhando uma casinha e movendo as sobrancelhas. - Ela deu um grito tão alto que todos nós tomamos um susto e corremos para a cozinha. Tamanha boba! Natália Semiónovna mandou que ela pusesse o dedo na água fria, mas ela ficou chupando... E como é que ela pode meter na boca aquele dedo sujo! Papai, mas isso é indecoroso!
Mais adiante ele contou que na hora do almoço entrou no pátio o homem do realejo com uma menina que cantava e dançava ao som da música.
"Ele tem seu próprio fluxo de pensamentos!", pensava o procurador. "Tem o seu próprio pequeno mundo na cabeça, e ele sabe, à sua maneira, o que é importante e o que não é. Para cativar a sua atenção e consciência não basta arremedar a sua linguagem, é preciso também pensar à maneira dele. Ele me compreenderia perfeitamente, se de fato eu lamentasse o tabaco, se eu ficasse abespinhado, se começasse a chorar... É por isso que as mães são insubstituíveis na educação, é porque elas sabem sentir junto com as crianças, chorar, gargalhar... Mas com lógica e moral não se chega a nada. Bem, que mais eu vou lhe dizer? O quê?"
E parecia estranho e ridículo a Ievguêni Pietróvitch que ele, um jurista experiente, que passara metade da vida em toda sorte de supressões, advertências e punições, se perdesse completamente e não soubesse o que dizer ao menino.
- Escute, dê-me a sua palavra de honra que você não vai fumar mais - disse ele.
- Pa-alavra de honra! - disse Seriója, calcando o lápis com força e curvando-se para o desenho. - Palavra de honra! Ra! Ra!
"Mas será que ele sabe o que é uma palavra de honra?", perguntou-se Bikovski. "Não, sou um mau preceptor! Se algum dos pedagogos ou algum dos nossos juízes espiasse agora dentro da minha cabeça, iria chamar-me de trapo e quiçá me suspeitasse de excesso de filosofice... Mas na escola e no tribunal todos esses problemas velhacos são resolvidos bem mais simplesmente do que em casa; aqui temos de nos haver com pessoas que amamos incondicionalmente, e o amor é exigente e complica a questão. Se este garoto não fosse meu filho, mas um aluno ou um réu, eu não estaria tão acovardado, e meus pensamentos não se dispersariam desta forma!"
Ievguêni Pietróvitch sentou-se à mesa e puxou para si um dos desenhos de Seriója. Nesse desenho estava representada uma casa de telhado oblíquo, com uma fumaça que, como um relâmpago, saía da chaminé em zigue-zague e subia até a margem superior do papel; ao lado da casa estava um soldado, com pontos no lugar dos olhos e uma baioneta que parecia o número 4.
- Um homem não pode ser mais alto que uma casa- disse o procurador. - Veja: o seu telhado chega até os ombros do soldado.
Seriója subiu no seu colo e ficou muito tempo se movendo a fim de se acomodar melhor.
- Não, papai! - disse ele, examinando o desenho. - Se desenhar o soldado pequenininho, não vai dar pra ver os olhos dele.
Seria necessário contestá-lo? Das suas observações cotidianas sobre o filho, o procurador convencera-se de que as crianças, como os selvagens, têm a sua própria visão artística e exigências singulares, inacessíveis à compreensão do adulto. A uma observação atenta, para um adulto, Seriója poderia parecer anormal. Ele achava possível e sensato desenhar pessoas mais altas do que casas, trasmitir com o lápis, além dos objetos, também suas percepções. Assim, ele representava os sons de uma orquestra na forma de esfumadas manchas esféricas, e um assobio, na forma de um fio em espiral... No seu entendimento, o som tinha um contato estreito com a forma e a cor, de maneira que, colorindo as letras, ele invariavelmente pintava o som do L de amarelo, do M de vermelho, do A de preto etc.
Largando o desenho, Seriója mexeu-se mais uma vez, assumiu uma pose confortável e ocupou-se da barba do pai. Primeiro ele alisou-a cuidadosamente, depois dividiu-a e começou a ajeitá-la em forma de suíças.
- Agora você parece o Ivan Stiepánovitch - murmurava ele -, mas agora você vai ficar parecido... com o nosso porteiro. Papai, por que os porteiros ficam perto das portas? Para não deixar entrar ladrões?
O procurador sentia no rosto o seu hálito, volta e meia tocava com a face os seus cabelos, e ele sentia um calor e uma moleza no coração, como se não apenas as suas mãos, mas toda a sua alma pousassem sobre o veludo do casaquinho de Seriója. Ele fitava os grandes olhos escuros do menino e parecia-lhe que, das pupilas dilatadas, fitavam-no a mãe, a esposa e tudo o que ele já amara.
"Agora tente dar-lhe uma surra...", pensava ele. "Tente agora inventar castigos. Não, qual o que, não é para nós nos metermos a educadores. Antigamente as pessoas eram simples, pensavam menos e por isso mesmo resolviam os problemas corajosamente. Mas nós pensamos demais, a lógica nos consumiu... Quanto mais desenvolvido é o homem, quanto mais ele pondera e entra em detalhes, tanto mais ele fica vacilante, cismado, e põe mãos à obra timidamente. Na verdade, se pensarmos em profundidade, quanta coragem e confiança em si mesmo são necessárias para se atrever a ensinar, julgar, escrever um livro grosso..."
Bateram as dez horas.
- Bem, menino, está na hora de dormir - disse o procurador-, despeça-se e vá.
- Não papai, - e Seriója franziu o rosto -, eu ainda vou ficar um pouco. Conte-me alguma coisa. Conte uma história encantada.
- Pois não, só que, depois da história, direto para a cama.
Nas noites livres, Ievguêni Pietróvitch costumava contar histórias para Seriója. Como a maioria dos homens de negócios, ele não sabia de cor nenhuma poesia e não se lembrava de nenhum conto de fadas, de modo que ele tinha de improvisar todas as vezes. Geralmente começava com o clichê "era uma vez, num reino distante", e ia em frente amontoando toda sorte de disparates inocentes e, contando o começo, não tinha noção de como seriam o meio e o fim. Quadros, personagens e situações apareciam a esmo, de improviso; a fábula e a moral decorriam como que por si mesmas, à revelia da vontade do contador. Seriója gostava muito dessas improvisações, e o procurador reparava que, quanto mais modesta e singela saía a fábula, tanto mais forte era o seu efeito sobre o menino.
- Ouça! - começou ele, erguendo os olhos para o teto. - Era uma vez, num reino muito distante, um velho rei, muito velho de longa barba grisalha e... e com esses bigodões. Pois bem, ele morava num palácio de vidroo, que brilhava e faiscava ao sol como um grande pedaço de gelo puro. E o palácio, meu maninho, erguia-se no meio de um enorme jardim, onde, sabe, cresciam laranjas... bergamotas, cerejas... floresciam tulipas, rosas, campainhas, cantavam pássaros multicores... Sim.Das árvores pendiam sininhos de vidro que, quando o vento soprava, soltavam um som tão delicado que as pessoas se esqueciam da vida. O vidro produz um som mais suave e delicado do que o metal. Bem, o que mais? No jardim havia repuxos... Lembra-se, você viu na dátcha da tia Sónia uma fonte com repuxo? Pois eram repuxos iguais àquele que ficavam no jardim real, só que de dimensões muito maiores, e o jato d'água alcançava o cume mais alto dos ciprestes.
Ievguêni Pietróvitch pensou um pouco e continuou:
- O velho rei tinha um filho único, herdeiro do reino. Um menino, assim como você. Ele era um bom menino. Nunca fazia manha, ia dormir cedo, não mexia em nada na mesa e... e era um menino sensato e bonzinho. Ele só tinha um defeito. Ele fumava...
Seriója escutava concentrado, e olhava nos olhos do pai sem piscar. O procurador continuava, pensando:"E agora, o que mais?".
Ficou longamente, como se diz, mastigando e remoendo, e terminou assim:
- De tanto fumar, o príncipe adoeceu de tísica e morreu quando tinha vinte anos. E o velho, caduco e adoentado, ficou sem qualquer apoio. Não havia ninguém para governar o reino e defender o palácio. Chegaram os inimigos, mataram o velho, destruíram o palácio e agora, no jardim já não há nem cerejas, nem aves, nem sininhos... Assim é, maninho...
Esse final parecia ao próprio Ievguêni Pietróvitch ingênuo e ridículo, mas a história toda causou em Seriója uma forte impressão. Novamente seus olhos enevoaram-se de tristeza e de algo parecido com susto; por um minuto, ele ficou olhando pensativo para a janela escura, estremeceu e disse com a voz apagada:
- Não vou fumar mais...
Quando ele se despediu e foi dormir, seu pai ficou andando silenciosamente de um canto para outro e sorrindo.
"Dirão que o que funcionou aqui foi a beleza, a forma artística", refletia ele. "Que seja, mas não é consolo. Mesmo assim, isto não é um recurso verdadeiro... Por que a moral e a verdade devem ser apresentadas não na sua forma crua, mas com misturas, inevitavelmente de forma açucarada e dourada, como as pílulas? Isto não é normal... Falsificação, enganação, truques..."
Lembrou-se dos jurados, para os quais é absolutamente necessário pronunciar um "discurso", do público, que assimila a história só por meio de lendas e romances históricos, de si mesmo, que haurira o bom senso da vida não de sermões e leis, mas as fábulas, romances, poesias...
"O remédio deve ser doce; a verdade, bela... E essa fantasmagoria o homem assumiu desde os tempos de Adão... De resto... Quem sabe tudo isso é natural e deve ser assim mesmo... Não são poucas na natureza as fraudes e as ilusões úteis..."
Ele pôs-se a trabalhar, mas os pensamentos preguiçosos e domésticos ainda continuaram a vagar pelo seu cérebro por muito tempo. Atrás do teto já não se ouviam mas as escalas, mas o morador do segundo andar ainda continuava a marchar de um lado para o outro...