segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Os outros

A melhor explicação de como vemos e como somos vistos:

"Porém, mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para todas as pessoas, e de que cada um não tem mais que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contabilidade ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos "ver uma pessoa que conhecemos" é em parte uma ação intelectual. Preenchemos a aparência física do ser que vemos com todas as noções que temos a seu respeito, e, para o aspecto global que nos representamos, tais noções certamente entram com a maior parte. Acabam por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal forma matizar a sonoridade da voz como se esta fosse apenas um envoltório transparente, que, cada vez que vemos esse rosto e ouvimos essa voz, são essas as noções que reencontramos, que escutamos".

Proust, em "No caminho de Swan"

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cortázar e o absurdo da ordem

“Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas”. Proust

Definições, rotina, segurança, certezas, explicações, deveres, coisas que “tiram um pouco o gosto desagradável do vazio”. Mas e quando esses consolos são justamente o motivo do desespero? Quando o que deveria aliviar, angustia? Quando os deveres criados pela falta de certeza, que deveriam servir de bóias, afogam?
No capítulo 74 do livro “O jogo da Amarelinha” aparece a seguinte nota, reproduzida aqui com alguns cortes: “O inconformista visto por Morelli, num apontamento preso com alfinete a uma conta de lavanderia: “Este homem move-se nas freqüências mais baixas e nas mais altas, desdenhando deliberadamente das intermediárias, ou seja, a zona corrente da aglomeração espiritual humana. Incapaz de liquidar a circunstância, procura voltar-lhe as costas; inepto para somar-se aos que lutam para liquidá-la, pois pensa que essa liquidação será uma simples substituição por outra igualmente parcial e intolerável, afasta-se encolhendo os ombros.
Num plano de fatos cotidianos, a atitude do meu inconformista traduz-se pela rejeição de tudo o que cheira a ideia recebida, a tradição, a estrutura gregária baseada no medo e nas vantagens falsamente recíprocas. Não é misantropo, mas só aceita, de homens e mulheres, a parte que não foi plastificada pela superestrutura social; ele próprio tem meio corpo metido no molde, e sabe disso, mas este saber é ativo e não a resignação daquele que marca passo. Com sua mão livre, esbofeteia a cara a maior parte do dia, e, nos momentos livres, esbofeteia a dos outros, que lhe retribuem em triplo. Assim, ocupa o seu tempo com problemas monstruosos que envolvem amantes, amigos, credores e funcionários, e, nos poucos momentos que lhe restam livres, faz da sua liberdade um uso que assombra os outros, e que acaba sempre em pequenas catástrofes irrisórias, à medida de si mesmo e das suas ambições realizáveis; outra liberdade mais secreta e evasiva o trabalha, mas somente ele (e olhe lá) poderia dar conta dos seus jogos”.”

Oliveira, um argentino que vive em Paris, sem carreira definida, títulos e o resto. Johnny, um brilhante saxofonista, referência no jazz. O que eles têm em comum? A inadequação, o estar no mundo e fora do mundo, a dificuldade com a realidade, com a rotina, com o tempo. Ambos são inconformistas.
Quando Johnny toca, diz que a música o tira do tempo. A hipoteca e a religião não são esquecidas por ele, mas, por alguns instantes, deixam de existir. Só ganham realidade novamente quando termina de tocar. Essa é sua confirmação do estar-vivo, sua arte.
Para Oliveira custa muito menos pensar do que ser. Ele sente um frio na espinha com a palavra “ocupação”. A ação em todas as suas complicações é motivo de insônia e aflição. Mas para ele, por trás de toda e qualquer ação, há sempre um protesto, pois fazer algo é, consequentemente, deixar de fazer alguma outra coisa, significando isso que em qualquer ato há sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito que era possível fazer, “o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente”. Por isso, ele acredita que mais vale renunciar, pois a renúncia à ação é o próprio protesto, e não sua máscara.

A ciência, a segurança, as crises


Johnny, de tempos em tempos, entra em crise. Após uma delas, em que tentou incendiar o quarto do hotel, foi para o hospital. Conversando com o narrador da história, um crítico de jazz chamado Bruno, ele falou sobre o que é sentir-se seguro. Começou a descrever a ocasião em que se encontrava internado em Camarillo, e que lá, os sujeitos que o atendiam tinham certeza, não se sabe do que, mas, por isso, eram seguros. Eles eram a ciência americana, o guarda-pó que os protegia dos buracos (buracos que Johnny via em todos os lugares); mas eles não viam nada, aceitavam o já visto por outros e imaginavam que isso era ver, “convencidíssimos de suas receitas, suas seringas, sua maldita psicanálise, seus não fume e seus não beba”. E Johnny não via a hora de cair fora.
Oliveira, em uma de suas conversas com seus amigos, diz que o homem agarra-se à ciência como se fosse aquilo a que chamam uma tábua de salvação, e que ele jamais soube bem o que era. Segundo ele a razão segrega através da linguagem uma arquitetura satisfatória, “como a preciosa e rítmica composição dos quadros renascentistas, e nos põe no centro”. E, apesar de toda a sua curiosidade e da sua insatisfação, a ciência, ou seja, a razão, começa por tranqüilizar os homens.
E então Oliveira passa a falar sobre os momentos de crise, quando o absurdo torna-se total, e diz que a dialética somente pode ordenar os armários nos momentos de calma. Nos momentos de crise verifica-se uma saturação da realidade, e no seu ponto culminante age-se sempre por impulso, ao contrário do previsível; esse é o momento em que se coloca fogo em um quarto de hotel, em que se pula de um navio ou dá-se um tiro em alguém. A razão, tida como tábua de salvação e tranqüilizante, só serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, mas nunca para resolver uma crise instantânea. Esse estado de crise é um estado que, se não se tivesse seguido pelo caminho da razão, talvez fosse o estado natural e corrente do “pitecantropo ereto”.
Essas crises que a maioria das pessoas considera escandalosas, absurdas, servem, segundo ele, para mostrar o verdadeiro absurdo, o absurdo de um mundo ordenado e calmo. Para ele o absurdo é você sair de manhã e encontrar a garrafa de leite na porta do seu apartamento, ficando muito tranqüilo porque ontem aconteceu o mesmo e amanhã voltará a acontecer. O absurdo é esse estancamento, esse assim seja, essa suspeitosa carência de exceções. Os milagres nunca lhe parecem absurdos, o absurdo é aquilo que os precede e o que vem depois.
E Johnny tem a mesma sensação, fala dela ao descrever o pão, que ele toca, corta em dois, enfia na boca; e não acontece nada. O fato de não acontecer nada é, para ele, terrível. Ele diz: “você corta o pão, mete a faca nele, e tudo continua como antes. Eu não compreendo, Bruno”.
Bruno, que o escuta, escreve que é cada vez mais difícil trazê-lo à realidade, ao que coloca uma observação: “à realidade; escrevo isso e sinto nojo. Johnny tem razão, a realidade não pode ser isso, não é possível que ser crítico de jazz seja a realidade, porque então existe alguém que está debochando de nós. Mas ao mesmo tempo não dá para seguir a corrente de Johnny, porque vamos acabar todos loucos”. O seu não-encaixe com o mundo tira seu interlocutor da sua bolha de segurança, suas dúvidas provocam nele a mesma angústia que, para Johnny e Oliveira, é quase insuportável.
Em outro trecho Bruno diz sentir raiva que as pessoas que convivem com Johnny não percebam que cada vez que ele sofre vai para a cadeia, quer se matar, incendeia um colchão ou corre pelado pelos corredores de um hotel, está pagando alguma coisa por eles, está morrendo por eles. E isso, sem saber.
O mesmo acontece o tempo todo com Oliveira. Em uma das passagens em que ele conversa com seu amigo Traveler, este lhe diz, a respeito de sua volta de Paris para a Argentina: “nunca pensei que você voltasse com essa cara, que pudessem tê-lo modificado tanto por lá, que você me desse tanta vontade de ser diferente... Você nem vive, nem deixa os outros viverem”.

O caminho

Johnny em meio a dúvidas, vontades de desistir do jazz, mudar pro campo, e coisas do gênero, acaba morrendo.
Oliveira, no meio de sua busca pelo outro lado do hábito, pelos milagres, buscando (ou não) entrar, de alguma maneira, em algum dos caminhos das circunstâncias, acaba tentando se suicidar. Final que pode ter outro desfecho, conforme a leitura feita, já que o livro “O jogo da Amarelinha” possibilita muitas ordens de leituras, o que faz com que haja outros fins possíveis. Uma metáfora de como a vida deveria ser. Mais plástica, com mais movimento, mutante, cheio de maravilhosos acasos.

Termino com um trecho, que me parece indicar um caminho, uma alternativa, uma tentativa:
“Entre o yin e o yang, quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranqüiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas”.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A-ç-ã-o

"Sair, fazer, pôr em dia, não eram coisas que o ajudassem a adormecer. Pôr em dia, que expressão! Fazer. Fazer algo, fazer o bem, fazer pipi, fazer hora: a ação em todas as suas complicações. Contudo, por trás de toda e qualquer ação, havia sempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, ou mover algo para que ficasse aqui e não ali, ou entrar numa determinada casa em vez de entrar ou não entrar na casa ao lado, significando isso que em qualquer ato havia sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito que era possível fazer, o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente. Acreditar que a ação pudesse culminar ou que a soma das ações pudesse realmente equivaler a uma vida digna desse nome era uma ilusão de moralista. Mais valia renunciar, pois a renúncia à ação era o próprio protesto, e não a sua máscara".

Cortázar, em O jogo da amarelinha.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nadando contra a velocidade

Sentimos vontade de passar a tarde e a noite num castelo. Muitos deles, na França, foram transformados em hotéis: um quadrado verde perdido numa extensão de feiúra desprovida de verde; uma pequena extensão de aléias, de árvores, de pássaros no meio de uma imensa rede de estradas. Estou dirigindo e, pelo retrovisor, observo um carro atrás de mim. A pequena luz à esquerda pisca, e o carro todo emite ondas de impaciência. O motorista espera a oportunidade de me ultrapassar; espera esse momento como uma ave rapina espreita um pássaro.
Vera, minha mulher, me diz:
- A cada cinquenta minutos, morre um homem nas estradas da França. Repare bem nesses loucos em volta de nós. São exatamente os mesmos que se comportam com uma prudência extraordinária quando uma senhora de idade é assaltada diante deles na rua. Como podem não ter medo quando estão dirigindo?
O que responder? Talvez isso: o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento de seu vôo; agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado quanto do futuro; é arrancado da continuidade do tempo; está fora do tempo; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado, não sabe nada de sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro, e quem se liberta do futuro nada tem a temer.
A velocidade é a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem. Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase.
Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase. Lembro-me daquela americana que, há trinta anos, com expressão severa e entusiasmada, uma espécie de apparatchik do erotismo, me deu uma aula (glacialmente teórica) sobre a liberação sexual; a palavra que surgia com maior frequência em seu discurso era a palavra orgasmo; eu contei: quarenta e três vezes. O culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia em contraposição à ociosidade; o coito reduzido a um obstáculo que é preciso ultrapassar o mais rápido possível para chegar a uma explosão extática, único objetivo verdadeiro do amor e do universo.
Porque o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza? Um provérbio tcheco define a doce ociosidade deles com uma metáfora: eles estão contemplando as janelas de Deus. Aquele que contempla as janelas de Deus não se aborrece; é feliz. Em nosso mundo, a ociosidade transformou-se em desocupação, o que é uma coisa inteiramente diferente; o desocupado fica frustrado, se aborrece, está sempre à procura do movimento que lhe falta.
Olho pelo retrovisor: ainda é o mesmo carro, que não pode me ultrapassar por causa do trânsito no sentido contrário. Ao lado do motorista está sentada uma mulher; por que será que o homem não lhe conta alguma coisa engraçada? Por que não põe a mão no joelho dela? Em vez disso, amaldiçoa o motorista que, diante dele, não anda rápido o bastante, e a mulher também não pensa em tocá-lo com sua mão, dirige mentalmente com ele e também me amaldiçoa.
E penso naquela outra viagem de Paris para um castelo no campo, que aconteceu há mais de duzentos anos: a viagem de Madame de T. e do jovem cavalheiro que a acompanhava. É a primeira vez que estão tão perto um do outro, e a indizível atmosfera de sensualidade que os cerca nasce justamente da lentidão da cadência: balançados pelo movimento da carruagem, os dois corpos se tocam, primeiro sem querer, depois querendo, e a história começa.

Milan Kundera, no Primeiro Capítulo do livro A Lentidão.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Nada é impossível de mudar

"Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar."
Bertold Brecht

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Porque é tão difícil escolher?

"Torturava-se com recriminações, mas terminou por se convencer de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores.
...
Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro.
Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: ein-mal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca".

Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Ditado da África: "A gente não tem relógio, mas a gente tem tempo".

Preâmbulo às Instruções para dar Corda no Relógio

Pense nisto: quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Não dão somente o relógio, muitas felicidades e esperamos que dure porque é de boa marca, suíço com âncora de rubis; não dão de presente somente esse miúdo quebra-pedras que você atará ao pulso e levará a passear. Dão a você - eles não sabem, o terrível é que não sabem - dão a você um novo pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a seu corpo com uma correia como um bracinho desesperado pendurado a seu pulso. Dão a necessidade de dar corda todos os dias, a obrigação de dar-lhe corda para que continue sendo um relógio; dão a obsessão de olhar a hora certa nas vitrinas das joalherias, na notícia do rádio, no serviço telefônico. Dão o medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Dão sua marca e a certeza de que é uma marca melhor do que as outras, dão o costume de comparar seu relógio aos outros relógios. Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio.

Cortázar, em Histórias de Cronópios e de Famas