quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cortázar e o absurdo da ordem

“Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas”. Proust

Definições, rotina, segurança, certezas, explicações, deveres, coisas que “tiram um pouco o gosto desagradável do vazio”. Mas e quando esses consolos são justamente o motivo do desespero? Quando o que deveria aliviar, angustia? Quando os deveres criados pela falta de certeza, que deveriam servir de bóias, afogam?
No capítulo 74 do livro “O jogo da Amarelinha” aparece a seguinte nota, reproduzida aqui com alguns cortes: “O inconformista visto por Morelli, num apontamento preso com alfinete a uma conta de lavanderia: “Este homem move-se nas freqüências mais baixas e nas mais altas, desdenhando deliberadamente das intermediárias, ou seja, a zona corrente da aglomeração espiritual humana. Incapaz de liquidar a circunstância, procura voltar-lhe as costas; inepto para somar-se aos que lutam para liquidá-la, pois pensa que essa liquidação será uma simples substituição por outra igualmente parcial e intolerável, afasta-se encolhendo os ombros.
Num plano de fatos cotidianos, a atitude do meu inconformista traduz-se pela rejeição de tudo o que cheira a ideia recebida, a tradição, a estrutura gregária baseada no medo e nas vantagens falsamente recíprocas. Não é misantropo, mas só aceita, de homens e mulheres, a parte que não foi plastificada pela superestrutura social; ele próprio tem meio corpo metido no molde, e sabe disso, mas este saber é ativo e não a resignação daquele que marca passo. Com sua mão livre, esbofeteia a cara a maior parte do dia, e, nos momentos livres, esbofeteia a dos outros, que lhe retribuem em triplo. Assim, ocupa o seu tempo com problemas monstruosos que envolvem amantes, amigos, credores e funcionários, e, nos poucos momentos que lhe restam livres, faz da sua liberdade um uso que assombra os outros, e que acaba sempre em pequenas catástrofes irrisórias, à medida de si mesmo e das suas ambições realizáveis; outra liberdade mais secreta e evasiva o trabalha, mas somente ele (e olhe lá) poderia dar conta dos seus jogos”.”

Oliveira, um argentino que vive em Paris, sem carreira definida, títulos e o resto. Johnny, um brilhante saxofonista, referência no jazz. O que eles têm em comum? A inadequação, o estar no mundo e fora do mundo, a dificuldade com a realidade, com a rotina, com o tempo. Ambos são inconformistas.
Quando Johnny toca, diz que a música o tira do tempo. A hipoteca e a religião não são esquecidas por ele, mas, por alguns instantes, deixam de existir. Só ganham realidade novamente quando termina de tocar. Essa é sua confirmação do estar-vivo, sua arte.
Para Oliveira custa muito menos pensar do que ser. Ele sente um frio na espinha com a palavra “ocupação”. A ação em todas as suas complicações é motivo de insônia e aflição. Mas para ele, por trás de toda e qualquer ação, há sempre um protesto, pois fazer algo é, consequentemente, deixar de fazer alguma outra coisa, significando isso que em qualquer ato há sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito que era possível fazer, “o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente”. Por isso, ele acredita que mais vale renunciar, pois a renúncia à ação é o próprio protesto, e não sua máscara.

A ciência, a segurança, as crises


Johnny, de tempos em tempos, entra em crise. Após uma delas, em que tentou incendiar o quarto do hotel, foi para o hospital. Conversando com o narrador da história, um crítico de jazz chamado Bruno, ele falou sobre o que é sentir-se seguro. Começou a descrever a ocasião em que se encontrava internado em Camarillo, e que lá, os sujeitos que o atendiam tinham certeza, não se sabe do que, mas, por isso, eram seguros. Eles eram a ciência americana, o guarda-pó que os protegia dos buracos (buracos que Johnny via em todos os lugares); mas eles não viam nada, aceitavam o já visto por outros e imaginavam que isso era ver, “convencidíssimos de suas receitas, suas seringas, sua maldita psicanálise, seus não fume e seus não beba”. E Johnny não via a hora de cair fora.
Oliveira, em uma de suas conversas com seus amigos, diz que o homem agarra-se à ciência como se fosse aquilo a que chamam uma tábua de salvação, e que ele jamais soube bem o que era. Segundo ele a razão segrega através da linguagem uma arquitetura satisfatória, “como a preciosa e rítmica composição dos quadros renascentistas, e nos põe no centro”. E, apesar de toda a sua curiosidade e da sua insatisfação, a ciência, ou seja, a razão, começa por tranqüilizar os homens.
E então Oliveira passa a falar sobre os momentos de crise, quando o absurdo torna-se total, e diz que a dialética somente pode ordenar os armários nos momentos de calma. Nos momentos de crise verifica-se uma saturação da realidade, e no seu ponto culminante age-se sempre por impulso, ao contrário do previsível; esse é o momento em que se coloca fogo em um quarto de hotel, em que se pula de um navio ou dá-se um tiro em alguém. A razão, tida como tábua de salvação e tranqüilizante, só serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, mas nunca para resolver uma crise instantânea. Esse estado de crise é um estado que, se não se tivesse seguido pelo caminho da razão, talvez fosse o estado natural e corrente do “pitecantropo ereto”.
Essas crises que a maioria das pessoas considera escandalosas, absurdas, servem, segundo ele, para mostrar o verdadeiro absurdo, o absurdo de um mundo ordenado e calmo. Para ele o absurdo é você sair de manhã e encontrar a garrafa de leite na porta do seu apartamento, ficando muito tranqüilo porque ontem aconteceu o mesmo e amanhã voltará a acontecer. O absurdo é esse estancamento, esse assim seja, essa suspeitosa carência de exceções. Os milagres nunca lhe parecem absurdos, o absurdo é aquilo que os precede e o que vem depois.
E Johnny tem a mesma sensação, fala dela ao descrever o pão, que ele toca, corta em dois, enfia na boca; e não acontece nada. O fato de não acontecer nada é, para ele, terrível. Ele diz: “você corta o pão, mete a faca nele, e tudo continua como antes. Eu não compreendo, Bruno”.
Bruno, que o escuta, escreve que é cada vez mais difícil trazê-lo à realidade, ao que coloca uma observação: “à realidade; escrevo isso e sinto nojo. Johnny tem razão, a realidade não pode ser isso, não é possível que ser crítico de jazz seja a realidade, porque então existe alguém que está debochando de nós. Mas ao mesmo tempo não dá para seguir a corrente de Johnny, porque vamos acabar todos loucos”. O seu não-encaixe com o mundo tira seu interlocutor da sua bolha de segurança, suas dúvidas provocam nele a mesma angústia que, para Johnny e Oliveira, é quase insuportável.
Em outro trecho Bruno diz sentir raiva que as pessoas que convivem com Johnny não percebam que cada vez que ele sofre vai para a cadeia, quer se matar, incendeia um colchão ou corre pelado pelos corredores de um hotel, está pagando alguma coisa por eles, está morrendo por eles. E isso, sem saber.
O mesmo acontece o tempo todo com Oliveira. Em uma das passagens em que ele conversa com seu amigo Traveler, este lhe diz, a respeito de sua volta de Paris para a Argentina: “nunca pensei que você voltasse com essa cara, que pudessem tê-lo modificado tanto por lá, que você me desse tanta vontade de ser diferente... Você nem vive, nem deixa os outros viverem”.

O caminho

Johnny em meio a dúvidas, vontades de desistir do jazz, mudar pro campo, e coisas do gênero, acaba morrendo.
Oliveira, no meio de sua busca pelo outro lado do hábito, pelos milagres, buscando (ou não) entrar, de alguma maneira, em algum dos caminhos das circunstâncias, acaba tentando se suicidar. Final que pode ter outro desfecho, conforme a leitura feita, já que o livro “O jogo da Amarelinha” possibilita muitas ordens de leituras, o que faz com que haja outros fins possíveis. Uma metáfora de como a vida deveria ser. Mais plástica, com mais movimento, mutante, cheio de maravilhosos acasos.

Termino com um trecho, que me parece indicar um caminho, uma alternativa, uma tentativa:
“Entre o yin e o yang, quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranqüiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, psicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas”.

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